Por José Adelino Guerra
Sentado numa cadeira de espaldar alto, tamborilava os dedos na parte lateral do couro rijo que formava o assento. O gesto era esquecido, porque o pensamento flutuava por entre sucessivas imagens que eu não conseguia suster. Aquela casa desconhecida, de aspecto austero, intimidava-me.
O anafado recepcionista que abrira a porta, de pois de saber ao que vínhamos, havia apontado com o seu gorducho indicador as rígidas cadeiras e fizera um sussurrado telefonema. Finalmente disse: o senhor doutor manda aguardar.
Aguardámos. Vindos do outro lado do balcão, chegavam até mim os estalidos inconfundíveis das comutações de uma velha central telefónica, que repetidas vezes eram interrompidas pelo som de uma estridente campainha, ao qual respondia sempre a voz timbrada de um homem.
Minha mãe segredou-me: o rapaz que está a atender o telefone também não vê.
Por aquela altura, todos em minha casa evitavam pronunciar a palavra cego. Confesso que eu também não a desejava ouvir. Fiquei a imaginar as mãos do rapaz, percorrendo e tacteando o painel da central telefónica, ligando e desligando negócios, amores, aflições e contentamentos.
De repente, dei por mim a passar os dedos nas rugosidades do couro da cadeira. Pareceu-me que não havia qualquer diferença entre o que sentia e o que seria capaz de sentir se não tivesse ficado cego. Mas logo pensei que esse sentir lendário dos cegos também havia de ser partilhado comigo. Se não fosse assim por que haveriam de existir centros de Reabilitação?
Chegou ordem para subirmos. Minha mãe levantou-se, agarrei o seu braço e, juntos, enfrentámos os degraus da larga escada de pedra que levava ao piso superior. Quando atingimos o primeiro patamar, parámos defronte de uma porta, perante a qual a minha progenitora hesitou durante breve momento. Com a mão direita ainda pousada sobre o polido corrimão de pedra, verifiquei que ele, depois de executar uma curva perfeita, esgueirava-se velozmente por ali acima, pronto a levar-me a locais ainda mais hostis que aqueles que agora enfrentava.
Vindas do lado de dentro chegavam até nós várias vozes, entrecortadas por sonoras gargalhadas.
Empurrámos a porta que nos separava daquele tumulto e, logo que entrámos, a conversa amainou, até se extinguir. Uma mulher, ainda jovem, cumprimentou-nos com afabilidade, apresentando-se como Directora do Centro. Depois dirigindo-se às suas ruidosas companhias, disse: o novo estagiário!
O grupo manteve-se por instantes silencioso, observador. Por fim, uma empertigada voz de rapariga perguntou: Como te chamas? Respondi, contrafeito, com o nome de família. Houve um silêncio e depois ela, dando um leve trejeito de riso à voz, retorquiu: mas esse é o seu apelido. Não tem nome?
Os seus companheiros, que começavam a entabular comentários, deixaram escapar leves risadas e voltaram a silenciar-se. Com voz agastada, pela entrada pouco promissora, resmunguei o meu nome.
Um providencial toque de campainha veio em meu socorro, e todos, esquecendo a minha presença, dirigiram-se, dois a dois, para as diferentes portas que circundavam aquele vestíbulo, desaparecendo por completo.
A Directora indicou-nos um sofá e, gentilmente, pediu que tivéssemos a paciência de esperar mais um pouco, até o senhor doutor nos receber.
Sentámo-nos e, com alívio, confirmei que estávamos novamente sozinhos. Sentia-me desconfiado, amargurado, perdido. E aquele pesadelo, que já não distinguia a noite do dia, o sono da insónia, reapareceu. A sequência era inevitavelmente a mesma: uma luz de relâmpago, terrível, avassaladora, o calor aveludado do sangue que brotava em borbulhões, e depois aquele zunir dilacerante que me gelava a alma e o corpo.
Das zonas mais recônditas e obscuras da minha alma, emergiam todos os medos, todas as incertezas. Como seria a vida no futuro? Oh! A condição humana! Ontem intrépido, vigoroso, seguro. Hoje inválido, cego, dependente. Como justificar a teimosia de ainda estar vivo?
Uma mão amiga pousou no meu ombro, e numa voz tranquila, o psicólogo Martinho do Rosário (Bernardo Santareno para a Literatura Portuguesa), disse-me: vem meu amigo!
Foram estas as primeiras palavras que ouvi do homem que, mais tarde, desceria ao fundo das minhas angústias e desesperos para me acompanhar no retorno à vida.
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Comentários
Felicitaçöes
Olá! Eu sou amblíope. Gostei muito do artigo"Renascer". Apesar de näo ser cega, desde sempre as pessoas sempre me viram como tal. É bastante embaraçoso para mim. Sinto-me muito incomodada com esta situaçäo. Mas sei que tenho de aceitá-la, já que trabalho numa escola e é normal que no início de cada ano lectivo os Profs. e alunos me olhem com uma certa curiosidade e até mesmo receio de se aproximarem de mim. Até breve!