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Ver o mundo com outros olhos

por Lerparaver

Quer ser jornalista de rádio para dar voz à “alma” das pessoas. Ana Morais tem 24 anos, é invisual, e a primeira aventura no mundo do jornalismo foi na Rádio Santo André, onde realizou o estágio curricular.

Ana Morais nunca viu a Fonte dos Amores. Quando chega à Quinta das Lágrimas, sorridente, é a primeira coisa que diz. Mas não se inquieta. “Tenho cá para mim que também não vai ser hoje”, revela, enquanto lança uma gargalhada. Assim dito, de forma tão simples, a cegueira ganha contornos de normalidade. Não podia ser de outra forma. Ana, 24 anos, é invisual desde nascença mas a deficiência não lhe roubou o bom humor. Pelo contrário. “Não consigo ver as coisas com os olhos da cara, mas consigo vê–las com outros olhos, utilizo outros sentidos para ver”, diz ao DIÁRIO AS BEIRAS. “Se calhar, e um bocadinho por experiência e por ter tido contacto com pessoas com outras deficiências - algumas muito graves -, fui percebendo que o que tem realmente importância são as pessoas, não são as coisas”. Licenciada em Jornalismo pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foram precisamente as pessoas que a cativaram na Rádio Santo André, em Vila Nova de Poiares, onde realizou o estágio curricular. Foi há oito meses que se aventurou no mundo difícil, mas aliciante, do jornalismo. “Sempre ouvi rádio e aquela chamou–me à atenção”. Não pensou duas vezes e ligou para a estação. “Perguntei como funcionava a rádio e o que devia fazer para realizar um estágio de três meses”. Na altura fez questão de frisar que era invisual, mas a resposta do outro lado da linha não tardou. “Disseram–me que se o meu pedido fosse recusado não seria pelo facto de eu ser cega, seria por não ser mesmo possível. Fiquei surpreendida pela positiva”, relata. O estágio não podia ter corrido melhor, muito graças às pessoas com quem trabalhou. Todos os dias, usava o computador portátil pessoal, dotado de um programa que verbaliza a informação, para criar as notícias. As notas, sempre que tinha que recolher declarações, eram escritas num caderno, com recurso a uma pauta e um punção (instrumentos de escrita em braile). “A rádio não tinha ferramentas para invisuais, mas tinha muito material humano”, recorda. “Como costumo dizer que a disponibilidade mental das pessoas é mais do que meio caminho andado”, acrescenta. Foi essa mesma “disponibilidade” que encontrou na faculdade, onde foi uma aluna exemplar. Sobretudo porque venceu a deficiência e fez um percurso notável no curso superior que frequentou e que terminou sem nunca reprovar. Desse tempo, não esquece os professores que lhe indicavam a bibliografia essencial, que seria depois transcrita para braile. “Diziam-me o que era acessório e o que era fundamental para o curso e punham-me em contacto com alunos dos outros anos para saber a parte da matéria que era mais importante”, recorda. Era ao Gabinete de Apoio Técnico–Pedagógico ao Estudante com Deficiência da Universidade de Coimbra que levava o material de que necessitava para ser digitalizado, gravado ou transcrito para braile. Os exames eram, também, dados em braile. “Eu estava numa sala à parte com o professor ou com outras pessoas responsáveis a fazer o exame. Escrevia em braile e depois era o gabinete de apoio que fazia essa reconversão para negro de modo a que o professor percebesse”. Acabou o curso aos 23 anos.

“Não é fácil todos os dias” “Ajudar os outros”. Foi isso que levou Ana a ponderar candidatar–se ao curso de Direito. Porém, “ser jornalista” foi o futuro que escolheu. “É uma profissão que me permite veicular aquilo que os outros sentem. Fascina–me o jornalismo mais cívico, aquele que permite dar voz aos outros”, lembrou. Ana Morais acredita ainda que é possível recuperar a dimensão humana do jornalismo. “Escrever com alma”, salienta. É essa essência que deve acompanhar um profissional do jornalismo. Agora, que terminou a licenciatura e realizou o estágio de três meses na Rádio Santo André, Ana quer aventurar–se no mercado de trabalho. Sabe que não vai ser fácil. “A esperança é a última que morre. Apesar de gostar muito do jornalismo (sobretudo de rádio), acho que temos que estar disponíveis para fazer outras coisas”, sustenta. Acredita que o facto de ser cega não a vai prejudicar. Aliás, nunca deixou se fazer o queria por ter nascido sem ver. “Quando sinto que posso não ser capaz, não tenho medo. Fico triste, mas penso que hei–de ser capaz. Não é fácil todos os dias. Isto não é todos os dias um mar de rosas. Não é para ninguém...”.

O sorriso de menina que não lhe sai do rosto, quase que contrasta com a força que transmite em cada gesto. A coragem faz com que nunca desista e, por isso, já se inscreveu num mestrado em Ciência Política na Universidade de Aveiro. “Temos que nos ir munindo de ferramentas que nos permitam trabalhar. Parar é morrer”. A tarde cai na Quinta das Lágrimas, o local que escolheu para dar a entrevista. “Disseram–me que era um sítio bonito”, diz, justificando a sua escolha. Antes de partir, estende a mão e segreda: “Ainda não foi desta vi que a Fonte dos Amores”. E uma gargalhada ecoa pelo jardim.

Fonte: http://www.asbeiras.pt/index2.php?area=coimbra&numero=47262&ed=04082007