Enfim, acho que podemos esquecer todas as possíveis hipóteses sobre as quais poderiam recair as suspeitas de ter sido sobre esta ou aquela pessoa que a Mãe Malquin decidiu encarnar. Não encarnou sobre Helie nem sobre Jack, muito menos foi sobre Alice ou sobre a sobrinha de Thom quase recêm-nascida, descubram então neste 13º Capítulo sobre quem é que foi e surpreendam-se com mais algumas atitudes adoptadas pela Menina dos Sapatos Bicudos. Desta vez não só salva a vida da bebé de Helie, como ainda chega a querer eliminar definitivamente a sua familiar Mãe Malquin por via do fogo, não o fazendo no entanto a pedido de Thom. Mais um capítulozinho surpreendente, acho que é só o que tenho para vos dizer a respeito de tudo aquilo que acabo de ler e também que será a partir daqui que Thom se apercebe de que tem realmente vocação para ser mago. As consequências de tal ofício, começa também a conhecê-las no decurso deste 13º capítulo, mas esse assunto penso que só mais tarde é que o autor o começará a desenvolver melhor e portanto só então poderei publicar tudo o que a isso disser respeito por muito que a curiosidade possa já estar a falar mais alto do que todos nós, interrogando-nos sobre as atitudes que daqui por diante Jack e Helie sobretudo adoptarão face à presença de Thom.
CAPÍTULO 13
OS PORCOS PELUDOS
Saí de casa a correr e dirigi-me para norte, direito à Colina do Carrasco, ainda em pânico,
só abrandando quando cheguei à pastagem norte. Precisava de ajuda, e rapidamente. Ia voltar a
Chipenden. Só o Mago me poderia ajudar naquele momento.
Mal cheguei à vedação limítrofe, os animais calaram-se e virei-me e olhei para trás, na
direção da fazenda. Vi, para lá dela, a estrada de terra batida serpenteando ao longe, como uma
mancha escura na manta de retalhos dos campos cinzentos.
Foi então que avistei uma luz na estrada. Uma carroça avançava na direção da fazenda.
Seria a minha mãe? Por um momento, a minha esperança renasceu. Mas quando a carroça se
aproximou do portão da fazenda, ouvi uma tosse ruidosa, o som de mucosidades a serem
reunidas na garganta, e depois alguém escarrou. Era apenas Snout, o matador de porcos. Tinha de
fazer o serviço a cinco dos nossos maiores porcos peludos; uma vez mortos, era preciso raspar
muito cada um, por isso queria começar cedo.
Ele nunca me fizera mal, mas eu ficava satisfeito quando terminava o serviço e se ia
embora. A minha mãe também nunca gostara dele. Detestava o hábito de estar sempre a reunir as
mucosidades espessas e depois lançá-las para o pátio.
Era um homem grande, mais alto ainda do que Jack, com músculos salientes nos
antebraços. Os músculos eram necessários para o trabalho que efetuava. Alguns porcos pesavam
mais do que um homem e debatiam-se com uns doidos para se esquivarem à faca. No entanto,
havia uma parte de Snout que fora descurada. As suas camisas eram sempre curtas, com os dois
botões de baixo abertos, e a barriga gorda, branca e peluda pendia sobre o avental de couro
castanho que usava para evitar que as calças ficassem ensopadas de sangue. Não deveria ter muito
mais de trinta anos, mas o seu cabelo era ralo e escorrido.
Desapontado por não ser a minha mãe, vi-o retirar a lanterna da carroça e começar a
descarregar as ferramentas. Efetuava os preparativos para a tarefa na parte da frente do celeiro,
mesmo ao lado da pocilga.
Eu já perdera tempo suficiente e começara a escalar a vedação para a mata quando, pelo
canto do olho, avistei um movimento mais abaixo na vertente. Uma sombra avançava, célere, ao
meu encontro, na direção dos degraus no outro extremo da pastagem norte.
Era Alice. Não queria que ela me seguisse mas preferia enfrentá-la agora do que mais tarde,
por isso sentei-me na vedação limítrofe e esperei que ela me alcançasse. Não tive de esperar muito
porque ela subia a colina correndo.
Não se aproximou demais, ficando a cerca de nove ou dez passos, de mãos no quadril,
tentando recuperar o fôlego. Mirei-a de alto a baixo, vendo de novo o vestido preto e os sapatos
bicudos. Devia tê-la acordado quando descera as escadas correndo; para me alcançar tão depressa,
certamente se vestira rapidamente, seguindo-me de imediato.
— Não quero falar com você — gritei-lhe, o nervosismo fazendo com que a voz me
tremesse e saísse mais esganiçada do que o costume. — Também não perca tempo seguindo-me.
Teve a sua oportunidade, por isso, de agora em diante é melhor que se mantenha bem longe de
Chipenden.
— Era bom que falasse comigo se quer evitar problemas — sugeriu Alice. — Em breve
será tarde demais, por isso há uma coisa que convém saber. Mãe Malkin já está aqui.
— Eu sei — respondi. — Eu a vi.
— Não apenas no espelho, porém. Não é só isso. Ela voltou, está em algum lugar dentro
da casa — disse Alice, apontando para o fundo da colina.
— Já te disse que o sei — respondi-lhe, furioso. — O luar mostrou-me o rastro que ela
deixou, e quando fui lá acima para te avisar, o que foi que descobri? Você estava já a falar com ela
e é natural até não ser a primeira vez.
Lembrei-me da primeira noite em que fora ao quarto de Alice e lhe dera o livro. Quando
entrara, a vela ainda fumegava diante do espelho.
— Provavelmente trouxe-a até aqui — acusei. — Disse-lhe onde eu estava.
— Isso não é verdade — retrucou Alice, uma raiva na sua voz equiparável à minha. Deu
cerca de três passos na minha direção. — Eu cheirei-a, sim, e servi-me do espelho para ver onde
estava. Não sabia que ela estava tão próximo, está bem? Ela era forte demais para mim, por isso
não consegui me afastar. Ainda bem que entrou naquele momento. A minha sorte foi ter partido
o espelho.
Queria acreditar em Alice, mas como podia confiar nela? Quando avançou mais uns passos,
virei-me parcialmente, pronto para saltar para a erva do outro lado da vedação. — Vou a
Chipenden buscar Mr. Gregory — disse-lhe. — Ele saberá o que fazer.
— Não há tempo para isso — respondeu Alice. — Quando voltar será tarde demais. Há
que pensar na bebê. Mãe Malkin quer fazer-te mal, mas estará sedenta de sangue humano. Ela
prefere o sangue jovem. É esse que a torna mais forte.
O medo fizera-me esquecer a bebê de Ellie. Alice tinha razão. A bruxa não iria querer
possuí-la, mas pretenderia, sem dúvida, o seu sangue. Quando eu chegasse com o Mago seria
tarde demais.
— Mas o que posso fazer? — perguntei. — Que hipóteses tenho contra a Mãe Malkin?
Alice encolheu os ombros e os cantos da sua boca descaíram. — Isso é assunto seu.
Certamente o Velho Gregory ensinou-lhe algo que possa ser útil, não? Se não o escreveu no seu
livro de notas, então, talvez esteja dentro da sua cabeça. Só precisa de se lembrar, é tudo.
— Ele não me falou tanto assim sobre as bruxas — referi, sentindo-me subitamente
aborrecido com o Mago. A maior parte da minha preparação fora sobre demônios, com alguns
bocadinhos sobre imagens fantasmagóricas e fantasmas... quando todos os meus problemas
tinham sido causados por bruxas.
Continuava a não confiar em Alice, mas agora, depois do que ela acabara de dizer, não
podia ir a Chipenden. Nunca conseguiria trazer o Mago até aqui a tempo. O aviso dela sobre a
bebê de Ellie parecera bem-intencionado, mas, caso Alice estivesse possessa ou do lado de Mãe
Malkin, aquelas eram as palavras precisas que não me deixariam outra alternativa senão descer a
colina em direção à fazenda. Aquelas palavras impediam-me precisamente de ir avisar o Mago, ao
mesmo tempo que me colocavam à mercê da bruxa para ela por as mãos em mim quando lhe
conviesse.
No percurso colina abaixo, mantive a distância de Alice, mas ela ia a meu lado quando
entramos no pátio e o atravessamos até perto da parte da frente do celeiro.
Snout estava ali afiando as facas; ergueu o olhar quando me viu e baixou-me a cabeça.
Correspondi à sua saudação. Depois de ele me cumprimentar, limitou-se a fitar Alice sem falar,
mas olhou-a de alto a baixo por duas vezes. Depois, antes mesmo de chegarmos à porta da
cozinha, assobiou longa e sonoramente, em aprovação.
Alice fingiu que não o ouvira. Antes de tratar do desjejum tinha outra tarefa a cumprir: foi
direta para a cozinha e começou a preparar o frango que iríamos comer à refeição do meio do
dia. Pendia de um gancho junto à porta, o pescoço e as entranhas já retirados na noite da véspera.
Começou por limpá-lo com água e sal, os olhos muito concentrados no que estava a fazer, para
que os dedos atarefados não falhassem o mais ínfimo pedacinho.
Foi então, enquanto a observava, que me lembrei finalmente de algo que talvez pudesse
funcionar num corpo possuído.
Sal e ferro!
Não tinha bem certeza, mas valia a pena tentar. Era o que o Mago usava para prender um
demônio num poço e podia ser que desse resultado no caso de uma bruxa. Se o atirasse a alguém
possesso, talvez conseguisse expulsar Mãe Malkin.
Não confiava em Alice e não queria que ela me visse servir-me do sal, por conseguinte, tive
de esperar até ela terminar de limpar o frango e sair da cozinha. Feito isso, e antes de iniciar as
minhas próprias tarefas, efetuei uma visita à oficina do meu pai.
Não levei muito tempo a encontrar aquilo de que precisava. Escolhi, de entre a enorme
coleção de limas na prateleira por cima do banco de carpinteiro, a maior e mais dentada delas
todas. Era aquela a que chamavam “bastarda” e que, quando era mais novo, me proporcionava a
única oportunidade de alguma vez usar tal palavra sem levar um sopapo na orelha. Comecei
então a limar a extremidade de um balde velho de ferro, o ruído bulindo-me com os nervos. Mas
não tardou que um ruído ainda maior cortasse o ar.
Foi o grito de um porco moribundo, o primeiro de cinco.
Sabia que Mãe Malkin podia aparecer em qualquer lado, e se ela não tivesse já possuído
alguém, a qualquer instante escolheria uma vítima. Fiz um esforço para me concentrar e ficar
permanentemente atento. Pelo menos agora tinha algo com que me defender.
Jack queria que eu ajudasse Snout, mas eu tinha sempre uma desculpa pronta, dizendo que
estava a acabar isto ou que ia começar a fazer aquilo. Se me pusesse a ajudar Snout não poderia
vigiar os demais. Como eu era apenas o irmão de visita por alguns dias, e não alguém contratado,
Jack não pôde insistir, mas andou lá perto.
No fim, depois do almoço, de semblante muito carregado, lá se viu na obrigação de ajudar
Snout, que era exatamente o que eu pretendia. Se ele estivesse a trabalhar defronte do celeiro, eu
sempre o podia vigiar à distância. Usei constantemente de pretextos para ir ver Alice e Ellie
também. Qualquer delas poderia estar possessa, mas, se fosse Ellie, não haveria grandes hipóteses
de salvar a bebê: passava a maior parte do tempo ou nos braços da mãe ou a dormir no berço à
sua beira.
Tinha o sal e o ferro, mas não sabia se seriam suficientes. Uma corrente de prata teria sido
muito mais eficaz. Mesmo que curta, sempre seria melhor do que nenhuma. Quando eu era
pequeno, escutara uma vez o meu pai e a minha mãe a falarem de um fio de prata que lhe
pertencera. Eu nunca a vira usar tal coisa, mas podia encontrar-se ainda algures na casa — talvez
na arrecadação mesmo por debaixo do sótão, que a minha mãe mantinha sempre fechada.
Mas o quarto deles não estava trancado. Em circunstâncias normais, nunca entraria ali sem
autorização, mas estava desesperado. Procurei no guarda-jóias da minha mãe. Havia lá pregadores
e anéis, mas nenhum fio de prata. Procurei em todo o quarto. Senti-me realmente culpado de
andar a remexer nas gavetas, mas não deixei de o fazer. Pensei que pudesse haver uma chave da
arrecadação, mas não a encontrei.
Enquanto andava à procura, ouvi as botas de Jack a subir as escadas. Fiquei muito quieto,
mal ousando respirar, mas ele foi apenas ao seu quarto por alguns momentos e desceu logo em
seguida. Concluí então a minha busca e, não tendo encontrado nada, desci para vir ver mais uma
vez como estavam todos.
Naquele dia, o ar estivera silencioso e calmo, mas, quando passei pelo celeiro, começou a
levantar-se uma brisa. O Sol principiava a baixar no horizonte, iluminando tudo com um brilho
quente e vermelho e prometendo bom tempo para o dia seguinte. Havia agora na frente do
celeiro três porcos mortos pendendo, de cabeça para baixo, de ganchos grandes. Eram cor-de-
rosa e tinham sido acabados de raspar, o último ainda a escorrer sangue para um balde, e Snout
encontrava-se ajoelhado, abraçado com o quarto, que estava lhe dando uma trabalheira — era
difícil dizer qual deles grunhia mais alto.
Jack, a parte da frente da sua camisa encharcada de sangue, deitou-me um olhar fuzilante
quando passei, mas limitei-me a sorrir e baixar a cabeça. Prosseguiam apenas a tarefa em mãos e
faltava ainda um bom bocado, pelo que estariam ocupados muito depois de o Sol se pôr. Até ao
momento, não houvera o menor sinal de desequilíbrio, nem sequer um indício de possessão.
Uma hora depois era já escuro. Jack e Snout trabalhavam ainda à luz da fogueira que
projetava as suas sombras no pátio.
O horror começou quando fui ao barracão na parte de trás do celeiro a fim de trazer uma
saca de batata de semente do armazém...
Ouvi um grito. Foi um grito cheio de terror. O grito de uma mulher que enfrenta a pior
coisa que lhe poderia acontecer.
Larguei a saca de batatas e corri para a parte da frente do celeiro. Ali, estaquei de repente,
mal podendo acreditar no que via.
Ellie encontrava-se a cerca de vinte passos, os dois braços estendidos, gritando a bom som,
como se a estivessem a torturar. A seus pés estava Jack, com o rosto cheio de sangue. Pensei que
Ellie gritasse por causa de Jack — mas não, era por causa de Snout.
Estava virado para mim, como se aguardasse a minha chegada. Agarrava na mão esquerda a
faca afiada preferida, aquela comprida que usava sempre para degolar os porcos. Fiquei estático,
horrorizado, porque sabia o que ouvira no grito de Ellie.
Ele segurava a bebê aninhada no braço direito.
Havia sangue espesso de porco nas suas botas e escorria ainda mais do avental para elas.
Aproximou mais a faca da bebê.
— Venha cá, rapaz — gritou na minha direção. — Venha cá. — Depois soltou uma
gargalhada.
A boca dele abria e fechava ao falar, mas não era a voz dele que saía. Era a de Mãe Malkin.
Tão pouco era a gargalhada cava e sonora dele. Era a risada da bruxa.
Avancei lentamente um passo na direção de Snout. Depois outro. Queria aproximar-me
dele. Queria salvar a bebê de Ellie. Tentei ser mais rápido, mas não consegui. Parecia que os meus
pés pesavam como chumbo. Era o mesmo que tentar correr desesperadamente num pesadelo. As
minhas pernas moviam-se como se não me pertencessem.
Percebi, de repente, de algo que me provocou calafrios. Eu não estava a avançar para Snout
porque queria. Mas porque Mãe Malkin me chamava. Ela estava a arrastar-me para ele ao ritmo
que pretendia, aproximando-me da faca dele a postos. Eu não ia salvar, mas tão-somente morrer.
Encontrava-me sob uma espécie de feitiço. Uma fórmula de compulsão.
Sentira algo semelhante à beira do rio, só que nessa altura a minha mão e o meu braço
esquerdos tinham agido por si próprios para atirar Mãe Malkin à água. Agora os meus membros
estavam tão incapazes como a minha mente.
Aproximava-me mais de Snout. Cada vez mais perto da sua faca a postos. Os olhos dele
eram os de Mãe Malkin e o seu rosto alterara-se de forma horrível. Era como se a bruxa dentro
de si lhe estivesse a distorcer a forma, inchando as faces ao ponto de arrebentarem, arregalando
os olhos ao ponto de saltarem, carregando o cenho como penhascos escarpados suspensos; por
baixo deles, os olhos bulbosos e salientes com fogo no centro, lançando um brilho vermelho e
sinistro à sua frente.
Dei outro passo e senti o meu coração bater forte. Novo passo e ele bateu novamente com
força. Estava agora muito mais próximo de Snout. Pum, pum, fazia o meu coração, um batimento
por cada passo.
Quando estava a menos de cinco passos da faca em riste, ouvi Alice correr na nossa
direção, gritando o meu nome. Vi-a pelo canto do olho, saindo da escuridão para o clarão da
fogueira. Vinha diretamente para Snout, o cabelo preto fluindo para trás como se corresse ao
encontro de um vendaval.
Sem interromper sequer o passo, deu um pontapé com toda a força por cima do avental de
couro dele, e vi a ponta do seu sapato bicudo enterrar-se fundo na barriga gorda dele, pelo que só
aparecia o calcanhar.
Snout arfou, dobrou-se e largou a bebê de Ellie mas, com a agilidade de um gato jovem,
Alice caiu de joelhos e apanhou-a antes mesmo de bater no solo. Depois virou-se bruscamente,
correndo na direção de Ellie.
No preciso instante em que o sapato bicudo de Alice tocou na barriga de Snout, o feitiço
quebrou-se. Eu estava novamente livre. Livre para mover os meus próprios membros. Livre para
me deslocar. Ou livre para atacar.
Snout encontrava-se quase dobrado ao meio mas endireitou-se e, apesar de ter largado a
bebê, segurava ainda a faca. Vi-o movê-la na minha direção. Vacilou também um pouco — talvez
estivesse sem equilíbrio, ou talvez fosse apenas uma reação ao sapato bicudo de Alice.
Liberto do feitiço, brotou em mim toda uma série de sentimentos. Havia pena pelo que
fora feito a Jack, horror ante o perigo que a bebê de Ellie correra e raiva por isto estar a
acontecer à minha família.
E, naquele momento, soube que nascera para ser um Mago. O melhor Mago que alguma
vez existira. Eu podia e iria fazer com que a minha mãe se orgulhasse de mim.
Sabem, é que em vez de estar cheio de medo, eu era todo gelo e fogo. Cá no âmago, eu
estava enfurecido, cheio de uma raiva ardente que ameaçava explodir. Ao passo que, por fora,
estava tão frio quanto o gelo, a minha mente encontrava-se alerta e lúcida, a respiração lenta.
Enfiei as mãos nos bolsos das calças. Depois retirei-as rapidamente, cada punho cheio do
que encontrara ali e arremessei cada mão-cheia diretamente na cabeça de Snout, algo branco da
minha mão direita e algo escuro na esquerda. Juntaram-se, uma nuvem branca e uma nuvem
preta, no preciso instante em que lhe atingiram o rosto e os ombros.
Sal e ferro — a mesma mistura tão eficaz contra um demônio. Ferro para lhe retirar a
força; sal para queimá-lo. Limalhas de ferro do balde velho e sal da despensa da minha mãe. Só
esperava que surtisse o mesmo efeito sobre uma bruxa.
Acho que levar com uma mistura daquelas na cara não seria bom para ninguém — no
mínimo, provocaria tosse e cuspidelas —, mas o efeito sobre Snout foi muito pior do que isso.
Primeiro abriu a mão e largou a faca. Depois os seus olhos reviraram-se e caiu pesada e
lentamente para a frente, ajoelhando-se. A seguir bateu com toda a força com a testa no solo e o
seu rosto virou-se para um dos lados.
Começou a sair-lhe algo espesso e viscoso da narina esquerda. Fiquei ali a ver, incapaz de
me mexer, enquanto Mãe Malkin saía lentamente a borbulhar e a contorcer-se da narina dele,
adquirindo a forma que eu recordava. Era ela, sem dúvida, mas uma parte sua estava igual,
enquanto outras se apresentavam diferentes.
Para começar, tinha menos de um terço do tamanho que apresentara da última vez que a
vira. Agora, os ombros dela mal passavam dos meus joelhos, mas trazia ainda a comprida capa
que arrastava pelo chão, e o cabelo grisalho e branco caía-lhe sobre os ombros curvados como
cortinas bolorentas. O que estava realmente diferente era a sua pele. Toda lustrosa, estranha e
como que torcida e esticada. No entanto, os olhos vermelhos não haviam mudado e fitaram-me
uma vez, antes de ela se virar e começar a afastar em direção à esquina do celeiro. Parecia estar a
encolher ainda mais e perguntei-me se seriam o sal e o ferro que continuavam a surtir efeito. Não
sabia o que mais podia fazer, por isso fiquei ali a vê-la afastar-se, exausto demais para me mexer.
Alice não se deteve por ali. Entregara entretanto a bebê a Ellie e veio correndo, dirigindo-
se para a fogueira. Pegou num pedaço de madeira que ardia numa extremidade, depois avançou
rapidamente para a Mãe Malkin, segurando-o diante dela.
Sabia o que ia fazer. Um toque e ela irromperia em chamas. Algo dentro de mim não podia
deixar que isso sucedesse porque era horrível demais, de modo que agarrei Alice pelo braço
quando ela passou correndo e rodei-a, posto o que largou a tora em chamas.
Ela virou-se para mim, o seu rosto todo em fúria, e julguei que fosse sentir um sapato
bicudo. Mas agarrou-me o antebraço com tanta força que as unhas se chegaram mesmo a cravar
fundo na carne.
— Endureça, ou não sobreviverá! — atirou-me na cara. — Só fazer o que diz o Velho
Gregory não chega. Morrerá tal como os outros!
Soltou-me o braço e, quando olhei para ele, vi gotas de sangue no lugar onde as unhas
tinham se cravado em mim.
— Tem de queimar uma bruxa — disse Alice, a raiva na sua voz a diminuir —, para se
certificar de que não voltará. Metê-la na terra não serve de nada. Só retarda as coisas. O Velho
Gregory sabe-o, mas é brando demais para usar o fogo. Agora é tarde demais...
Mãe Malkin desaparecia nas sombras, tendo contornado o celeiro, continuando a encolher
a cada passo, arrastando a capa preta pelo solo atrás de si.
Foi então que percebi que a bruxa cometera um grande erro. Seguira o caminho errado,
diretamente para o chiqueiro maior. Nesta altura estava suficientemente pequena para passar por
debaixo da primeira tábua.
Fora um dia péssimo para os porcos. Cinco deles haviam sido mortos e houvera momentos
de muito barulho e sujidade, que provavelmente os deixaram bastante assustados. Por
conseguinte, o que se pode dizer é que não estavam nada satisfeitos e, provavelmente, não seria a
ocasião mais indicada para entrar no chiqueiro deles. E, além disso, os porcos grandes e peludos
comem tudo, seja lá o que for. Não tardou que chegasse a vez de Mãe Malkin gritar e fê-lo
durante muito tempo.
— Aquilo deve equivaler a queimá-la — comentou Alice, quando o som finalmente
desapareceu. Pude constatar o alívio no rosto dela. Eu sentia o mesmo. Estávamos ambos
satisfeitos por ter acabado tudo. Estava cansado, de maneira que me limitei a encolher os ombros,
não sabendo muito bem o que pensar, mas olhava para Ellie e não gostei do que vi.
Ellie estava assustada e horrorizada também. Olhava-nos como se não pudesse acreditar no
que acontecera e no que tínhamos feito. Era como se me tivesse visto devidamente pela primeira
vez. Como se se percebesse de repente do que eu era.
Compreendi também algo. Pela primeira vez, sentia realmente o que era ser o aprendiz do
Mago. Vira as pessoas atravessarem para o outro lado da rua a fim de evitarem passar perto de
nós. Vira-as estremecer ou benzer-se só porque havíamos atravessado a sua aldeia, mas não o
levara a mal. Na minha mente era a sua reação ao Mago, não a mim.
Mas não podia ignorar este fato, ou passá-lo para segundo plano na minha mente. Estava a
acontecer-me diretamente e estava a acontecer na minha própria casa.
De repente, senti-me mais sozinho do que nunca.
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