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Ajudas técnicas: novo sistema, velhas questões

por Lerparaver

I – Introdução

1. A ACAPO – Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, é a associação que representa e defende, a nível nacional, os direitos e os interesses das pessoas com deficiência visual, garantindo a sua auto-representação na tomada das decisões que lhes dizem directamente respeito.

Nos últimos meses, a ACAPO tem recebido inúmeros pedidos de esclarecimento e até queixas de pessoas cegas e amblíopes que, dirigindo-se aos Centros de Emprego do IEFP para obterem financiamento de ajudas técnicas, vêem sistematicamente os seus pedidos serem indeferidos, sem que para tal se conheça uma explicação fundamentada e plausível, que possa ser admissível à luz quer do anterior regime quer do novo sistema de atribuição de produtos de apoio, que de resto falta ainda regulamentar. Assim, fruto desses vários casos que nos têm sido apresentados, e ainda do trabalho conjunto que os nossos Departamentos do Apoio ao Emprego e Formação Profissional e de Acção social têm vindo a efectuar no terreno quanto a esta matéria, resultam a nosso ver situações que urge esclarecer e corrigir, e que seguidamente exporemos. A Direcção Nacional da ACAPO aproveita ainda para agradecer o contributo empenhado e fundamentado do Presidente do conselho Fiscal e de Jurisdição da ACAPO, Dr. José Adelino Guerra, que pela sua vasta experiência nesta matéria foi de grande utilidade para a sistematização e fundamentação das observações que efectuámos.

II – Enquadramento

2. O regime de atribuição de ajudas técnicas/produtos de apoio desdobra-se por várias vertentes, assumindo importância quer ao nível dos apoios ao estudo, emprego e formação profissional, quer também ao nível dos auxílios à autonomia de mobilidade, de acesso à informação e cultura, ou até como condição necessária para uma maior autonomia na realização das mais elementares actividades da vida diária. Todos estes domínios justificam plenamente a importância transversal de que se reveste a atribuição destas ferramentas às pessoas com deficiência visual, tanto mais que, na sua esmagadora maioria, os produtos em causa têm custos proibitivos.

Desde 2009, o regime legal que suporta o financiamento, pelo Estado, da aquisição deste tipo de produtos tem vindo a ser alterado, sendo que algumas das reformas preconizadas por lei ainda não estão concretizadas, e outras têm vindo a ser implementadas de uma forma que, a nosso ver, está a comprometer seriamente a autonomia de vida das pessoas com deficiência visual.

III – Produtos de apoio e incentivos ao emprego de pessoas com deficiência

3. No que toca aos apoios estatais para adaptação dos postos de trabalho ocupados por pessoas com deficiência, a legislação em vigor está plasmada no Decreto-Lei nº 291/2009 e também em diversas normas de carácter eminentemente programático do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009. O regime legal em vigor consagra um regime em que a ajuda do Estado é supletiva. Se, por um lado, este regime faz sobressair o papel que os empregadores têm nesta matéria, por outro lado ao estabelecer um limite para esse apoio equivalente a pouco mais de 6 mil euros, não protege adequadamente a integração profissional de pessoas com deficiência, nomeadamente em empresas de menor dimensão e com menores capacidades económicas.

4. Além do mais, o regime preconizado pelo DL 291/2009 exclui, do seu âmbito de aplicação, as entidades públicas – designadamente a administração autárquica, ou outros empregadores que sejam sujeitos de direito público. Sabemos que as normas do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 59/2008, atribuem a responsabilidade de adaptação dos postos de trabalho às entidades empregadoras públicas, mas com as restrições orçamentais que se avizinham, a ACAPO teme que os legítimos direitos que assistem às pessoas cegas e com baixa visão nesta matéria possam ficar excessivamente limitados, pelo que entendemos ser de todo necessário disciplinar, de forma objectiva, a responsabilidade dos entes públicos nesta matéria.

5. A experiência de acompanhamento de processos de integração profissional de pessoas cegas e com baixa visão, que a ACAPO tem vindo a reunir ao longo de muitos anos, leva-nos também a ter alguns receios quanto ao modo concreto de aplicar este incentivo. Com efeito, já na vigência da anterior legislação (Decreto-Lei nº 247/89), a ACAPO constatara diversas situações em que os empregadores se furtavam àquelas que seriam as suas normais responsabilidades, repercutindo em sede de adaptação do posto de trabalho o custo com equipamentos que, no caso de empregados sem qualquer tipo de deficiência, seria da sua responsabilidade fornecer.

6. Assim, a ACAPO defende que seja claramente explicitada a responsabilidade das empresas no que diz respeito à parte que lhes compete suportar das ajudas para adaptação do posto de trabalho, devendo existir flexibilidade no montante suportado pelo Estado para casos em que, comprovadamente, o nível de rendimentos das empresas torne excessivamente desproporcionada a adaptação do posto de trabalho das pessoas com deficiência.

IV – Novo sistema de atribuição de ajudas técnicas/produtos de apoio

7. O regime da atribuição de ajudas técnicas/produtos de apoio, de carácter mais transversal, em razão da deficiência consta agora do Decreto-Lei nº 93/2009. Pela primeira vez, o Estado português consagra de forma estável – com carácter de lei – um sistema continuado de atribuição de produtos de apoio a todas as pessoas com deficiência, o que pode constituir em nosso entender um passo importante para a definição do modelo de atribuição e utilização de tais ajudas técnicas. Consciente de que o referido Decreto-Lei está ainda em fase de regulamentação, a ACAPO entende oportuno alertar para alguns aspectos, no sentido de serem devidamente acautelados os direitos das pessoas com deficiência visual.

8. Numa primeira análise, a ACAPO saúda o carácter universal do novo sistema de atribuição de produtos de apoio (SAPA), conforme plasmado no artigo 5º do DL 93/2009. No entanto, alertamos para o facto de que a natureza universal de um sistema significa que nenhuma pessoa, em razão da sua incapacidade específica, pode ficar de fora deste sistema, devendo garantir-se que o sistema atribui, de forma igualitária, produtos de apoio a pessoas com todas as deficiências. Até aqui, em muitas situações, as pessoas com deficiência visual eram preteridas quando se dirigiam a algumas entidades financiadoras, devido à insuficiência de verbas para financiamento da totalidade dos pedidos. A ACAPO entende que há que implementar critérios que fomentem a transparência na atribuição de produtos de apoio, critérios que têm que estar claramente definidos e ser conhecidos antecipadamente, e que garantam uma plena igualdade de oportunidades para todas as pessoas com deficiência.

9. No sistema de atribuição de produtos de apoio preconizado pelo DL 93/2009, e segundo o artigo 11º deste Decreto-Lei, o papel do IEFP é o de entidade que disponibiliza as verbas para os financiamentos atribuídos pelos Centros de Emprego para a atribuição de produtos de apoio no domínio da formação profissional e emprego. A ACAPO manifesta algumas preocupações pela persistência de um modelo de financiamento centrado nos próprios centros de emprego, que pode conduzir por um lado a enormes disparidades no montante e no tipo de produtos financiados, e por outro a situações em que, apesar de haver financiamento a nível de outros centros de emprego, o mesmo não é executado por estar distribuído antecipadamente a esses centros de emprego, em claro prejuízo de pessoas com deficiência que poderiam beneficiar. A ACAPO entende que o papel centralizador do IEFP, como o de outras entidades que disponibilizam verbas a entidades financiadoras, tem que ser um papel mais activo na gestão dessas verbas, garantindo a sua permanente redistribuição em função das efectivas necessidades das pessoas com deficiência.

10. Uma das novidades introduzidas pelo Sistema de Atribuição de Produtos de Apoio (SAPA) prende-se com o facto de deixar de ser regra a necessidade de prescrição médica para todo o tipo de ajudas técnicas. Esta medida parece-nos de louvar, na medida em que nas áreas da mobilidade, acesso à informação e produtos de apoio à vida diária, sobretudo no caso das pessoas cegas, era muito frequente a exigência de prescrição traduzir-se numa formalidade que, não raras vezes, descaracterizava por completo o apoio que qualquer equipamento poderia prestar. A ACAPO defende pois que este tipo de produtos deixe de necessitar de prescrição médica, sendo muito mais profícua a sua prescrição por técnicos com experiência em cada deficiência específica. Salientamos no entanto a necessidade de assegurar essa experiência efectiva de contacto com as pessoas com deficiência, pois só assim poderemos garantir que o dinheiro que a montante as entidades financiadoras irão empregar será, realmente, bem aplicado.

V – Necessidades específicas da regulamentação

11. A ACAPO aguarda também a regulamentação do DL 93/2009 com algumas expectativas, na medida em que esperamos que o novo processo de atribuição de produtos de apoio deva ser bem mais agilizado, libertando-o de formalidades ou burocracias dispensáveis. Assim, e a título de exemplo, o comprovativo da deficiência e da sua natureza específica deve ser feito simplesmente pela apresentação do atestado de incapacidade multi-uso, na medida em que, por um lado, se tornam desnecessários detalhes médicos mais aprofundados ou, por outro, esses detalhes médicos terão sido alvo de apreciação casuística, no caso de produtos de apoio cuja prescrição seja obrigatoriamente efectuada por médicos.

12. A regulamentação que vier a ser aprovada deve ainda ter em conta a crescente necessidade de formação dos utilizadores dos referidos equipamentos específicos. COM efeito, e sobretudo no domínio das novas tecnologias mas não só, a complexidade técnica dos produtos de apoio, aliada à situação específica das pessoas com deficiência recente, torna imperioso que, ao financiar, as entidades competentes tenham em conta e valorizem adequadamente a disponibilização de formações específicas para o manuseio daquele produto em especial, evitando assim que, para obter algum rendimento do mesmo, os utilizadores finais tenham que incorrer em despesas adicionais. É de recordar, a este propósito, que a lógica do SAPA parece apontar para a reutilização daquelas ajudas que deixem de servir as necessidades de uma determinada pessoa com deficiência em concreto, como de resto nos parece bem patente no nº 4 do artigo 10º do DL 93/2009. A ACAPO entende também que deverá ficar desde já claro, na regulamentação do citado Decreto-Lei, que o financiamento deve também poder abranger as despesas necessárias à actualização ou manutenção dos referidos equipamentos, na medida em que esta se mostre economicamente viável, podendo esse limite ser fixado pela entidade gestora do SAPA para cada situação em concreto. Não raras vezes, os produtos de apoio tornam-se rapidamente obsoletos por falta de actualizações, ou simplesmente deixam de funcionar por falta de baterias ou outros consumíveis, sendo muitas vezes a sua reparação ainda bastante dispendiosa para as pessoas com deficiência.

VI – Conclusões

13. A ACAPO reconhece os méritos do novo modelo de atribuição de produtos de apoio que se pretende implementar, mas não deixa de alertar para a necessidade da sua rápida regulamentação. Actualmente, existem dezenas de casos de pessoas com deficiência visual que se têm dirigido a centros de emprego e outras entidades financiadoras, e que vêem sistematicamente indeferidos os seus pedidos de produtos de apoio, ficando muitas vezes sem poder participar, em plenas condições de igualdade com os demais cidadãos, nas mais variadas dimensões da vida e da cidadania.

14. Para a ACAPO, 2011 não pode ser o ano que assinale mais retrocessos nesta matéria, de vital importância para as pessoas com deficiência visual. Sermos cidadãos de pleno direito implica um esforço empenhado da nossa parte, mas também implica que não nos sejam negados, sob nenhum pretexto, os meios essenciais para o pleno exercício dessa cidadania. Porque defendemos a auto-representação das pessoas com deficiência na tomada das decisões que lhes dizem directamente respeito, estamos como sempre disponíveis para encontrar em conjunto soluções que melhor se adeqúem aos direitos e interesses legítimos das pessoas com deficiência visual.

Lisboa, 28 de Dezembro de 2010

A Direcção Nacional da ACAPO

Fonte: comunicado da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) disponível em http://www.acapo.pt/miss-o-e-estrategia/representac-o-de-interesses